From: Simonini-AT-HomeNet.com.br (Eduardo Simonini Lopes) Subject: =?iso-8859-1?Q?Frestas_para_Marias_e_Jos=E9s?= Date: Wed, 1 Apr 1998 11:57:30 -0300 Caros companheiros de lista. Deleuze e Guattari são instigantes e nos convidam continuamente a prestar atenção aos simulacros... esse pequeno quantum de caos que pode inventar mundos. Mas todos nós, de uma forma ou de outra, nos protegemos desses simulacros... nos protegemos da invenção e do caos. No livro Ilusões, de Richard Bach, há uma historinha inicial que conta muito bem como preferimos ficar apegados a nossas certezas a nos lançarmos na incerteza da correnteza. Bruna Lombardi, em um de seus livros, disse que "Quem se entrega sabe que viver plenamente é arrancar a rede de segurança e se lançar..." Vejo na figura de Maria do Carmo Araújo (a poetisa sobre a qual comentei no passado e até coloquei na lista alguns de seus poemas) uma pessoa que se lança. E nesse lançar se despedaça..., mas se reconstrói e se despedaça de novo, e se reconstrói... Ela é uma pessoa muito humilde, fala rápida, com dificuldade em lidar com limites, muito intensa em seus investimentos. Teve um câncer maligno nos rins, sendo-lhe imputada a sentença de morte dentro de um mês. Mas resolveu viver..., viver em todos os sentidos, e há seis anos encontra-se "curada" do câncer. Sua intensidade já a fez receber vários rótulos, principalmente o de louca. O seu filho mais novo, de nove anos, graças a vários fatores como a pouca condição financeira da mãe, a fama de desvairada da mãe, além do fato de ele ser uma criança inteligente, expressiva, mas com dificuldade de lidar com frustrações .Maria do Carmo tem uma história de vida de muita imposição de limites e podas de expressão, sendo que tem muita dificuldade de colocar limites rigorosos a seus filhos... colocar limites mais enérgicos a eles é reviver os próprios limites a ela impostos e que , de certa forma, contribuíram para uma espécie de suicídio inconsciente simbolizado na figura de um câncer nos rins (um órgão que purifica o sangue, que desobstrui as veias...). Apesar de o menino estar com nove anos, três escolas públicas da cidade o rejeitaram no início deste ano letivo. O menino ficou no máximo uma semana em cada escola e logo recebeu o rótulo de irrecuperável. E uma das escolas escreveu no histórico da criança que a mesma "desisitiu" da escola. Maria do Carmo ficou indignada com o descaso. Recorreu à secretaria municipal de educação, às diretoras, mas de nada adiantou. Provavelmente no dia de hoje, estará saindo um artigo dela no jornal Hoje em Dia, comentando o momento que está passando. "Escola não é esmola, é um direito" esbraveja ela. Mas a luta nos dias de hoje, é difícil, principalmente quando se luta pelo ângulo da margem; quando se luta tendo poucas atenções sobre os seus reclames e poucas armas de combate. Deixo aqui com vocês o texto que ela me entregou hoje pela manhã frente aos sentimentos que ela e seu filho vêm vivendo. O que tudo isso tem a ver com Deleuze e Guattari? O que isso tem a ver com esta lista? Talvez nada. Talvez tudo. O texto dela, como também sua vida, é uma "vontade de potência" como diria Nietzsche. Uma vontade de potência e um manifesto marginal, que eu estou tentando amplificar neste rizoma que é a internet. ********************************************** Fresta para Marias e Josés! No. 2 Maria do Carmo Araújo Antes de falar que a criança desistiu da escola, é coerente que se pense no mestre que desistiu da criança, depois de poucos contatos e ações, limitando-se em resmungar que ele nasceu torto... ora, as crianças que não são tratadas pelos adultos , como quem precisa de uma infância digna, serão vítimas de uma história assim: Quando estavam na barriga da mãe, os transeuntes e as beatas olhavam a barriga apontando o fruto... e faziam cara de desdém, cochichando malícias como se a mãe solteira fosse obrigada a carregar também o peso da solidão... Ah! O amor ainda é rotulado e padronizado em papéis que desbotam... mas a mulher de passos firmes, imitou a árvore urbana que frutifica mesmo sendo apedrejada e podada. Quando nasceu o seu rebento, ninguém apareceu para perguntar se faltava alimento. E ela, mesmo em condição elementar, foi arrancando esperança de dentro para fora e caminhava segurando a mão do seu filho, com uma alegria tão contagiante, como se quisesse dizer ao mundo que fez uma parceria com Deus ao assumir o seu fruto, mesmo sabendo que o futuro é um míope sem óculos. Hoje ele é um garoto saudável e já pode até ir à escola à procura de frestas. Mas se omissos lhe puxaram a cadeira, empurrando-o à marginalidade, é hora da mãe imitar a árvore de novo. Mostrar aos medíocres que o marginal não surge ao acaso. São frutos apedrejados ainda verdes. Não se pode continuar aceitando que as pessoas se comportem como um motorista bêbado (em alta velocidade) que depois de esmagar os sonhos de alguém, encare tudo como um acidente comum. E numa sociedade absurdamente inteligente, absurdos entram facilmente para a lista do descaso e da desculpa, porque a doença deste final de milênio é a indiferença. Não se questiona o comportamento ou o QI de quem que seja, perto de um talão de cheques (mas não é esse o meu caso, e creio que pertenço a uma classe de deserdados políticos), por isso escrevo. Tenho um compromisso com os anseios e a verdade de um povo sublime que precisa acordar a cada acontecimento. É triste viver no país do "Quem Indica", mas o remédio contra qualquer tipo de opressão, está no jeito de mostrar olhos atentos. O jeito de olhar alarga a fresta. Os pés até fazem festa! Viçosa, 01 de Abril de 98
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