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From: Simonini-AT-HomeNet.com.br (Eduardo Simonini Lopes)
Subject: Um texto meio em caos
Date: Fri, 10 Apr 1998 18:16:51 -0300



É interessante como as pessoas que vão para a pista da universidade estão
interessadas em correr. Tudo em nossa vida já é tão corrido e incerto, e as
pessoas ainda insistem em aumentar o ritmo. Preferi a caminhada a fim de
tentar sentir o meu próprio ritmo, o meu próprio fluir junto com as coisas
ao meu redor.
Mas minhas caminhadas ainda se encontram muito restritas... Quando eu era
criança, embrenhava-me em caminhadas pelo meio do mato, emocionado pelas
descobertas que fazia e pelos mundos que inventava. Aos poucos esses mundos
e descobertas foram abafados por outras obrigações.
Preferi caminhar na pista, circulando em torno de mim mesmo, mas deixando
minha mente mais livre do que geralmente fica quando estou a correr e não a
caminhar.
Lembrei-me nitidamente da experiência que tive no último final de semana em
Belo Horizonte, durante a primeira aula do curso de Esquizodrama... É
interessante como o acaso é algo que nos pega pelo pé, e como ele me
incomoda. Como é difícil deixar-se fluir... ou melhor, como é difícil
deixar-se fluir, deixando de lado também as certezas, as seguranças, as
técnicas, os "pára-quedas" . Fiquei muito incomodado na breve vivência do
acaso... fiquei com medo de mim mesmo, de falar o que pensava, de falar o
que sentia, de me permitir encontros rápidos e ao mesmo tempo abandônicos;
fiquei com medo de me envolver em uma criação de um discurso grupal... com
medo de falar e de ouvir.
O acaso que eu tanto "namoro", me é amedrontador. Quero, no final das
contas, meio que controlar o acaso, a fim de fugir do sentimento de
diluição, de incerteza, de falta de saber, de falta de controle que ele me
dá.
Mas foi uma experiência angustiante e inventiva, a de Belo Horizonte. Fico
pensando na dança entre caos e ordem. Será que existe realmente caos e
ordem? Existe essa dualidade? Se permitimos que o caos surja, logo se
estabelece uma nova ordem (imprevisível, mas nova organização). Já em
situações de controle e ordem, repentinamente surgem frestas de caos.
É como se o caos, dissesse a respeito de uma ordem que não nos é palpável,
de uma ordem de outro nível de significação, que para nós é completamente
desorganizada. Por sua vez, toda ordem dança no fino fio do caos, toda ordem
é organização instável, propensa à transformação. E é interessante como nos
acostumamos a dizer que a ordem é boa e o caos e mau.
Em Belo Horizonte, a dinâmica produziu o caos, encontros rápidos, palavras
rápidas e aparentemente desencontradas, dando vazão a espaços em crescente
desordem e movimento. Quando paramos com aquilo, fomos percebendo que as
palavras tão ao acaso, pouco a pouco iam formando um enredo, uma lógica de
outro tipo, de outra configuração.
Por exemplo, uma psicóloga ouviu para si as seguintes palavras: cú, perto,
longe, sítio, junto, volta. Quando perguntada qual frase poderia montar com
aquelas palavras, pensou um pouco e respondeu: "o 'cujunto' perto do sítio,
volta."
Na desordem uma nova ordem singular montou-se para ela, uma nova ordem que
dizia a respeito do seu desejo de continuar a progredir, de ir adiante, de
não voltar para a casa materna, logo agora que ela tem uma lugar para si
(sítio, em Portugal, significa lugar). Podia também falar de um investimento
no novo, um novo que ela pode temer não suportar a imprevisibilidade, e
voltar ao local de onde partiu.
No aparente caos, uma ordem subjacente e improvável foi construída. E quais
outras ordens improváveis podem surgir, quando nos deixamos fluir com o
desconhecido, sem nos aventurarmos a domar tanto nossas reflexões? Quais
novas ordens poderão surgir quando nos arriscarmos a brincar
despreocupadamente com as idéias?
Isso me leva diretamente a pensar a respeito do atendimento que faço aos
meus clientes, onde muitas vezes fico preocupado em colocar ordem no caos de
emoções que eles me trazem.
Penso na menina de 10 anos que atendo, em sua dificuldade de ordenar seu
mundo afetivo, em sua dificuldade de criar limites para sua expressão
afetiva, pelo próprio medo de se encontrar com o sofrimento que esses
limites podem lhe causar.
Minha primeira vontade, nesse caso, é procurar delimitar as coisas para ela,
é fazer com que ela fale do que tem medo, de que estabeleça limites.
Mas se eu fizer o contrário? E se eu estender a desorganização, e se eu
ampliar o "caos"... e se não existir caos algum nem ordem alguma... sendo
tais conceitos apenas variações de um mesmo processo?
Qual nova ordem ela mesma pode criar ao se ampliar o que ela traz, ao invés
de tentar trancar o que ela traz dentro de uma lógica e uma ordem de fatos
já estabelecida por mim?
Tanto eu quanto ela temos medo de lidar com o que não controlamos... e ela
foge disso caindo na dispersão e no não controle. E se ampliarmos a
dispersão? Que novas formas de lidar com os limites tão temidos ela poderá
inventar? Nós dois poderemos inventar?
O brincar, simplesmente pelo brincar, seja com idéias, com desenhos, com
palavras, com sensações, com riscos, retas, ... pode ser mais subversivo e
intenso que as mais sangrentas das revoluções, pois nunca saberemos ao certo
o que iremos encontrar, o que iremos inventar, ou mesmo se, no final de
tudo, não estaremos completamente diferentes.
E é interessante que tantos pensamentos me assaltaram e me levaram
exatamente enquanto eu caminhava, quando me permiti seguir sem me preocupar
onde chegar; o meu prazer era o próprio caminhar. Nisso os encontros foram
se tornando intensos e possíveis e inventivos.
Acho que o mesmo acontece com os atendimentos psicológicos. Quando estamos
por demais preocupados onde chegar, acabamos por perder de mão os encontros
que podem nos levar a uma referência caótica (que constantemente fugimos
pelo medo à fragmentação) e que no entanto pode conduzir a uma nova ordem
antes não pensada... uma nova ordem que é construção mútua, e não apenas do
terapeuta; não apenas do paciente.
10-04-98



   

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